REALIDADE COMO O QUE PRODUZ EFEITO

Por: Ajax Perez Salvador [i]  

Parte-se da afirmação de Jung: “Não conheço nada a respeito de uma supra-realidade. A realidade contém tudo o que podemos saber, pois aquilo que age, que atua, é real. ” (JUNG, 1984, §742); da mesma forma que “o pensamento (que) existiu e existe, mesmo que não se refira a uma realidade palpável, e produz inclusive efeito. ” (JUNG, 1984, §744), também seria real.

   Jung diz que em uma “situação da experiência” haveria sempre um certo condicionamento psíquico que se interpõe ao imediatamente dado, não haveria acesso direto a qualquer coisa ou uma “realidade imediata”. A assimilação seria uma tendência no sujeito que o leva a interpretar de determinada maneira. O que produz o efeito de interpretação seriam as relações em complexo. Isto faria com que tudo aparecesse na psique associado em algum complexo e todas as coisas só possam aparecer em relação. Citando Condillac afirma que: “Não há processos psíquicos isolados, como não existem processos vitais isolados. ” (JUNG, 1984, §197). Desta forma a consciência pode assumir o papel de “complexo assimilante” (JUNG, 1984, §197).

   A narrativa Junguiana afasta-se do pensamento unitário e coloca como referência fundamental a noção de complexo: “o complexo é uma unidade psíquica” (JUNG, 1999, p.33). Não haveria algo que pudesse ser unitário, isolado e fora da psique pois:

“Todo acontecimento afetivo torna-se um complexo. Se o acontecimento não estiver relacionado a um complexo já existente, possuindo assim um significado momentâneo, ele submerge (…) até o momento em que uma impressão semelhante a reproduza novamente.” (JUNG, 1999, p.58)

   Um complexo afetivo seria uma imagem de determinada situação psíquica “dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia. ” (JUNG, 1984, §201). “Eles (os complexos) são grupos autônomos de associações, com tendência de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção. ” (JUNG, 1983, p. 67).[ii] Pode-se refletir que os seres não seriam coisas em si isoladas e independentes[iii]. Todos os atributos ou propriedades que procuram caracterizar singularmente os seres seriam “neles” e não “deles”, não seriam como propriedades particulares. Os sentidos de cada atributo ou ato também não seria do ser, mas seria efeito de diversos olhares outros (diversos complexos configurados por diversos padrões arquetípicos diferentes); ou seja, tudo sempre em relação. 

   Afirma-se com isto um olhar em que os “fatos” que aparecem como imediatamente dados ou como certeza sensível seriam efeitos da assimilação de complexos aglutinando e unificando o diverso na existência. E, a realidade passa a ser tudo o que produz efeito, mesmo que não se refira a algo palpável, mensurável ou claramente definido na consciência. Assim como eram reais os complexos inconscientes que não podiam ser vistos, tocados ou mensurados, a não ser em seus efeitos[iv].

   Nesta perspectiva “Realidade” seria tudo aquilo que produz efeito e faz parte do mundo vivo. Por isso, na perspectiva Junguiana fantasia é realidade, uma vez que produza efeito é real!

   O que aparece como verdade empírica teria a estrutura de uma ficção – seria efeito das funções dirigidas da consciência que inibem “todos os elementos psíquicos que parecem ser, ou realmente são incompatíveis” (JUNG, 1984, §136). A determinação psíquica dos complexos unificando a multiplicidade excluiria o que parece incompatível por um ato de julgamento que “é parcial e preconcebido, porque escolhe uma possibilidade particular, à custa de todas as outras. ”  (JUNG, 1984, §136). Além disto julgaria a partir do que é conhecido na experiência e não do que é novo ou desconhecido. Jung fala de “um fator significativo, instintivo que é a libido de parentesco. ” (JUNG, 1978, p.98). E dos perigos das “afinidades” com seu impulso de assimilar o insondável e “incompatível” à forma objeto familiar e conhecida e realizar “oculta situação incestuosa” (JUNG, 1978, p. 104).

   A realidade material estaria sempre em constante movimento, mudança, múltipla, paradoxal, cheia de sentidos e mistérios variados, em infinitas possibilidades de configuração e reconfiguração; seria ao mesmo tempo conhecida e misteriosa[v], enigmática. Quando isto se torna insuportável a unilateralidade da consciência produziria uma unificação da realidade de forma a torná-la estável, domesticada e é isto que apareceria a consciência como imediaticidade da certeza sensível. Esta leitura aproxima-se da frase de Freud que Žižek cita onde “A realidade destina-se àqueles que não podem suportar o sonho” (Freud – apud – Žižek, 2010, p.125). Os seja a verdade teria a estrutura de uma ficção.

   Reforça-se esta compreensão quando é tratado o “problema das atitudes típicas na estética” (JUNG, 1991b, p.278) e se aponta que diante da quantidade impressionante e estonteante de objetos animados, o homem criaria para si uma abstração, “isto é, uma imagem abstrata universal em que limita as impressões numa forma fixa. Esta imagem tem o significado mágico de uma proteção contra a mudança caótica da vivência. ” (JUNG, 1991b, p.285).

“A abstração tem sempre este efeito: mata a atividade independente do objeto na medida em que esta se relaciona magicamente com a psique do sujeito. Por isso, o abstrativo a utiliza conscientemente, para proteger-se contra a influência mágica do objeto.” (JUNG, 1991b, p.284).

   Embora leve à criação de formas artísticas e ao conhecimento do objeto, a abstração seria uma função que “luta contra a participação mística primitiva. Ela afasta do objeto para destruir os vínculos com ele. ” (JUNG, 1991b, p.283). E, por fim, o homem mesmo pode tornar-se uma abstração.

“O homem mergulha tão profundamente e nela se perde que, ao final, coloca sua verdade abstrata acima da realidade da vida, e a vida, que poderia estorvar o gozo da beleza abstrata, é de todo reprimida. Ele mesmo se torna abstração, ele se identifica com o valor eterno de sua imagem e nela se fixa, porque se transformou para ele em fórmula redentora. Renuncia, desse modo, a si mesmo e transfere sua vida para sua abstração na qual, de certa forma, fica cristalizado.” (JUNG, 1991b, p.285).

   Critica-se a “crença pura e simples de que o âmbito da ideia e o âmbito da palavra que lhe correspondia em geral deveriam coincidir em todos os casos. ” (JUNG, 1991b, p.45). Jung fala da ilusão do significado absoluto das palavras –“as palavras são muitas vezes expressão inadequada dos fatos” (JUNG, 1991b, p.45). Seria essa significação mágica e absoluta das palavras, que levaria a pressuposição de também estar contida nelas a atitude objetiva das coisas. Refere que o princípio da inerência[vi] sofre também “do velho fetichismo de palavras que admite ingenuamente que a palavra coincide com a coisa. ” (JUNG, 1991b, p.46).

   Desta forma Jung apresenta uma crítica ao olhar abstrato que pode ser aproximado do tema discutido por Nietzsche em “Sobre verdade e Mentira” (NIETZSCHE, 1978, p.48), na formação de um conceito que, “nasce por igualação do não-igual”.[vii] O que é chamado de “natureza” por Nietzsche poderia ser visto como realidade material que não se submete nunca inteiramente a formas ou conceitos, mas que não seria totalmente inacessível pois se apresentaria através dos efeitos de resistência ao que parece nítido e empiricamente evidente para determinados padrões complexos. Os efeitos dos complexos inconscientes.

   A atitude empática tem sua base no significado e força mágicos do objeto e também cria. Neste caso o sujeito é que se apoderaria do objeto mediante uma identificação mística; “influenciado magicamente pela força do fetiche, mas, por outro, é também o feiticeiro e acumulador da força mágica que fornece carga ao fetiche. ” (JUNG, 1991b, p.283). Na atitude empática haveria também despotencialização inconsciente do objeto pois os conteúdos são idênticos e fariam com que este pareça sem vida – “Poderíamos então neste caso falar de uma abstração inconsciente, sempre à disposição, que apresenta o objeto como desprovido de alma. ” (JUNG, 1991b, p.284).

   Astutamente Jung ainda aponta que a atitude empatizante ao trazer para dentro do objeto a atividade e vida do sujeito, ao se entregar ao objeto este se tornaria objeto; se identifica com o objeto e, portanto, sai de si mesmo.  Ao empatizar a vontade de agir em um “outro” (objeto) se liberta do ser individual, abrindo a compulsão interna da experiência para um objeto externo pode-se sentir a individualidade “fluir para limites estreitos, em oposição à diferenciação ilimitada da consciência individual. ” (JUNG, 1991b, p.285). Realizar-se-ia uma auto-renúncia pois colocaria uma limitação nas possibilidades ilimitadas do agir ficando nos limites dessa objetivação presente.

  Empatia e abstração são apontados por Jung como mecanismos de adaptação e proteção. Se a imagem abstrata aparece como muro protetor contra os efeitos destrutivos dos objetos inconscientemente animados, na atitude empatizante há uma proteção contra a dissolução por fatores internos subjetivos (possibilidades ilimitadas da fantasia e correspondentes impulsos à ação). (JUNG, 1984, §92). Entretanto é interessante observar que ao se entregar ao “outro” (ao se tornar objeto), ao sair de si (ou do que a consciência vive subjetivamente como sendo si mesmo) é que pode haver uma libertação do ser individual. Ao perder-se na auto-renucia é que se poderia ter uma forma de liberdade que não é fazer apenas o que o Ego deseja, mas de estar livre para não ter que ser dominado imperativamente só pelo complexo do Ego.

   Pode-se entender que o que se chama “seres reais” são efeitos de relação entre infinitos elementos com infinitos significados também em relação. O acesso às formas de relação seria possível pelos efeitos destas sobre a atividade objetivante da consciência. Os efeitos tanto poderiam ser visíveis e mensuráveis como aparecerem na forma de resistência ou interferência sobre o que parece claro e nítido. A atitude que Jung propõe para o analista é a que reconhece e dá tanto valor para esta segunda forma de efeitos como para a primeira. Para isto seria preciso buscar escutar o misterioso, enigmático, desconhecido ou o inconsciente – que não se encontra em outro local, mas que pulsa vivo em tudo indeterminando qualquer coisa que pareça clara, nítida, determinada e conhecida para a consciência. Assim a realidade pode ser vista como tudo o que produz efeito e não apenas o que é visível, palpável ou mensurável.

 

Obras Citadas:

HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas – A Ciência da lógica. Vol. 1. São Paulo: edições Loyola, 1995.

JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Vols. VIII-2. Petrópolis: Vozes, 1984.

—. Fundamentos de Psicologia Analítica. Vol. Vol. XVIII/1. Petrópolis: Vozes, 1983.

—. La psicologia de la transferencia. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1978.

—. Psicogênese das doenças mentais. Vol. III. Petrópolis: Vozes, 1999.

—. Símbolos da transformação: análise dos preludios de uma esquizofrenia. Vol. V . Petrópolis: Vozes, 2008.

—. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991b.

NIETZSCHE, Friedrich W. “Sobre verdade e mentira no sentido extra moral.” Nietzsche, Friedrich.

Os Pensadores – Obras Incompletas. São Paulo: Abril cultural, 1978. 45-52.

ŽIŽEK, Slavoj. “Não existe grande Outro.” Revista Cult 14 de março de 2010: 125.

 

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[i] Professor nos cursos de pós graduação do IJEP- Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa  (www.ijep.com.br) e Professor convidado do IJB Instituto Junguiano da Bahia – Médico psiquiatra; psicoterapeuta – psicologia arquetípica; Mestre em Saúde Mental USP; Supervisor técnico de Saúde da Lapa Pinheiros – SMS – PMSP; Facilitador no grupo de exercício de metáforas – psicopatologia reimaginada; Ex-Professor no Inst. Sedes Sapientiae no curso: Perspectivas Psicopatológicas – Psicologia Arquetípica; – E-mail: apersal@uol.com.br;

[ii] Em “Símbolos da Transformação” Jung refere preferir a expressão “imago” ao invés de complexo, para indicar a “(…) independência viva na hierarquia psíquica, aquela autonomia que se cristalizou como particularidade essencial do complexo de sentimentos às custas de experiências múltiplas e que é ilustrada pelo conceito de “imago” (…) imago tem apoio no romance Imago de Spitteler e na antiga ideia religiosa de “imagines et lares”. Em meus escritos posteriores uso o termo “arquétipo” e com isso quero expressar o fato de tratar-se de motivos impessoais, coletivos. ”  (JUNG, 2008, §63, nota de rodapé nº5)

[ii] Como é exposto no texto “Psicologia da Transferência” capítulo I falando sobre a Fonte de Mercúrio (JUNG, 1978). O mar nosso (“mare nostrum”) aponta que todo ser surgira sempre em relação, por tanto nosso. Assim, toda determinação de qualidades (propriedades ou atributos) seria um processo relacional. Só se determinaria algo em relação a outro algo que é posto ao mesmo tempo e quando é posto em uma situação, em um contexto próprio a existência; como foi exposto por Hegel na ciência da lógica (Hegel, 1995). A água perene e o mar tenebroso indicariam que o processo está sempre em movimento, um constante devir – Aqua vitae – água da vida. (…) O homem só apareceria como totalidade vivente e como unidade no ato. O ato que se origina como resultado de impulso, sucessão e realização. Ato como o resultado de um evento que abarca a totalidade anímica.  (JUNG, 1978, p.72).

[iii] Como é exposto no texto “Psicologia da Transferência” capítulo I falando sobre a Fonte de Mercúrio (JUNG, 1978). O mar nosso (“mare nostrum”) aponta que todo ser surgira sempre em relação, por tanto nosso. Assim, toda determinação de qualidades (propriedades ou atributos) seria um processo relacional. Só se determinaria algo em relação a outro algo que é posto ao mesmo tempo e quando é posto em uma situação, em um contexto próprio a existência; como foi exposto por Hegel na ciência da lógica (Hegel, 1995). A água perene e o mar tenebroso indicariam que o processo está sempre em movimento, um constante devir – Aqua vitae – água da vida. (…) O homem só apareceria como totalidade vivente e como unidade no ato. O ato que se origina como resultado de impulso, sucessão e realização. Ato como o resultado de um evento que abarca a totalidade anímica.  (JUNG, 1978, p.72).

[iv] Jung chama de “fator psíquico” ao que aparece produzindo efeitos de perturbação para o que era esperado pelo modo de proceder empírico das ciências naturais -“(…) descobri os complexos de tonalidade afetiva que anteriormente eram registrados sempre como falhas de reação. ” (JUNG, 1984, §196). Ou seja, psíquico seria aquilo que “perturba” o que é esperado como acerto na velocidade e na média das reações e de suas qualidades – E, mesmo não se podendo ver, tocar ou medir, isto produz efeito e é através deste efeito que é possível alguma aproximação do que seriam os complexos inconscientes.

[v] Se o que aparece como conhecido é uma forma de negar aspectos incompatíveis ou paradoxais isto seria uma maneira de desconhecer. Por outro lado, se o desconhecido, misterioso e enigmático abre acesso a realidade viva em constante mudança com infinitos sentidos então “conhecer” passa a ser uma forma de desconhecer e ouvir o erro, a falha, o misterioso e enigmático inconsciente uma forma de conhecer. Uma forma que extrai mistério, desconhecido, inquietação e indeterminação de tudo que parece claro e determinado.

[vi] “(…) princípio da inerência está em que uma afirmação de identidade também nada tem a ver com a coisa: a palavra capim não tem nexo com a coisa capim. ” (JUNG, 1991b, p.46).

[vii]“Toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única, à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais. Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse “folha”, uma espécie de folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma primordial. Denominamos um homem “honesto”; por que ele agiu hoje tão honestamente? — Perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha é a causa das folhas. O certo é que não sabemos nada de uma qualidade essencial, que se chamasse “a honestidade”, mas sabemos, isso sim, de numerosas ações individualizadas, portanto desiguais, que igualamos pelo abandono do desigual e designamos, agora, como ações honestas; por fim, formulamos a partir delas uma qualitas occulta com o nome: “a honestidade”. A desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma, enquanto que a natureza não conhece formas nem conceitos, portanto também não conhece espécies, mas somente um X, para nós inacessível e indefinível. Pois mesmo nossa oposição entre indivíduo e espécie é antropomórfica e não provém da essência das coisas, mesmo se não ousamos dizer que não lhe corresponde: isto seria, com efeito, uma afirmação dogmática e como tal tão indemonstrável quanto seu contrário. ” (NIETZSCHE, 1978, p.48) negrito meu.

Fonte: IJBA