Uma pequena fábula política.
As vezes uma pessoa surge nas nossas vidas de forma inesperada, depois some tão rápido quanto apareceu. Mesmo assim, deixa uma marca indelével em nossos espíritos simplesmente pela força de seu caráter.
Assim aconteceu comigo, no fato que vou lhes narrar.
Há uns três anos, devido uma dor constante, consultei-me no posto de saúde e a médica pediu que fizesse um exame detalhado das veias das pernas.
Como é comum no SUS, após o agendamento, demorou uns quatro meses para o exame ser marcado: no dia tal eu pegaria o transporte da prefeitura às seis da manhã e iria junto com um grupo para um ambulatório médico especializado onde faria o tal exame, depois aguardaria que todos os outros fizessem seus exames ou tratamentos para, lá pelas duas da tarde, pegarmos o transporte de volta.
Para passar o tempo levei um livro, que devorava enquanto esperava a interminável fila à minha frente ser atendida.
É de praxe que esse tipo de situação produza duas coisas: uma conversa com o estranho ao seu lado, e comentários depreciativos com os serviços públicos do Brasil.
De fato, ao meu lado estava uma senhora que por qualquer razão chamou-me a atenção, e embalado pelo romance policial de Agatha Christie que eu lera, comecei a tentar conhece-la antes de conversarmos, só pela observação.
Era uma senhora de uns sessenta e cinco anos, loira, com penetrantes olhos azul-acinzentados muito argutos, contrastando com o corpo mais envelhecido do que o normal, com as costas arqueadas e rugas de preocupação.
Vestia roupas de marca, um tailleur verde que apesar de muito usado, demonstrava um bom gosto interrompido no passado por algum revés financeiro.
Começamos aquela conversa básica, criticando instituições e serviços do país e culpando a própria sociedade, alienada e consumista, por tudo.
Logo ela revelou que minhas suposições estavam certas: fizera faculdade de direito com pós graduação na Inglaterra, onde viveu por cinco anos. Numa certa época, já de volta ao Brasil, assumiu uma importante função no governo do Estado de São Paulo, atingindo uma função incomum para uma mulher na época.
Então começou à perceber coisa estranhas – irregulares – acontecendo ao seu redor: movimentações de dinheiro público beneficiando empresários e políticos desonestos.
Cumprindo sua função, ela pediu explicação aos envolvidos sob ameaça de levantar denúncia.
Recebeu então propostas de suborno, que recusou de pronto, então o suborno virou ameaças de morte rapidamente.
A senhora me contava isso com o devido cuidado de omitir nomes e datas, e continuou.
“- Não vou defender minha vida para trair meus ideais”, disse, “- Se quiserem me matar, terão de se explicar depois, pois sou pessoa pública!”.
Assim, continuou a defender o que acreditava em detrimento da própria segurança.
Mas o idealismo acabou pouco tempo depois, quando recebeu em seu gabinete um envelope com diversas fotos de um sobrinho muito querido que sofria de síndrome de down.
Decidiu que não poria em risco a vida de uma criança indefesa por causa de sua profissão: abandonou o cargo no outro dia. “- Nunca mais consegui um emprego num escritório de advocacia na minha vida, “ele” me queimou no Estado inteiro, até passei dificuldade!” Ela contou. –Mas quem é “ele”, eu perguntei, ela disse: “-isso eu não posso dizer, menino. “Ele” está em Brasília agora, é muito famoso, aparece na televisão…”
Acabada a conversa, ela tinha que ir, eu sentia que tinha que dizer algo, – Parabéns…pelo seu caráter, eu disse e ela se foi.
Nessa hora o leitor pode ficar decepcionado, esperando uma formidável lição de moral, mas não há: ou melhor talvez haja, mas, como tudo na vida, fica à critério de cada um.
Só não consigo deixar de pensar na frase tão oportunamente grosseira de Gil Gomes: “Se você for honesto, trabalhador, pode não consertar o mundo, mas tenha certeza: será um canalha a menos andando pelas ruas!”
Por: Rafael Marçola